• sábado, 17 de novembro de 2012

    JOÃO UBALDO RIBEIRO – Vida volátil


    Fico escrevendo aqui umas coisas meio paranoicas sobre a evolução
    tecnológica e aí concluo que me explico mal, porque tem gente que
    pensa que sou um tecnófobo reacionário, que gostaria de escrever com
    pena de ganso. Grave injustiça. Fui dos primeiros escritores
    brasileiros a usar computador para escrever, tripulando um clone
    nacional (e ordinário) de um Apple II, sem disco rígido e com 148 KB
    de memória, dos quais o editor de texto comia 120. Com sua tremenda
    impressora matricial, fazia sucesso e eu recebia visitas turísticas a
    meu escritório. Sempre gostei de novidades tecnológicas e claro que
    não sou, nem adianta ser, contra essas novidades.
    Meu problema não é com tecnologia, é com certos usos que podem fazer
    dela. Considerando a geral natureza do ser humano, que, agora mesmo,
    está se matando ferozmente em várias partes do mundo, esses usos, como
    alguns que já mencionei aqui, às vezes me metem medo. E, se a
    tecnologia nos beneficia de incontáveis formas, não devemos esquecer
    como ela é também usada para o mal e para objetivos odiosos e como
    pode afetar nossa vida para pior, em termos humanos e sociais.
    Além disso, nesta longa estrada cibernética que percorri e continuo a
    percorrer, tenho tido de me adaptar a mudanças cada vez mais rápidas,
    que cansam até mesmo alguns viciados em comprar todas as versões do
    iPad. Nos Estados Unidos, quando computador aqui ainda se chamava
    ‘cérebro eletrônico’, cheguei a estudar a linguagem Fortran e
    trabalhar com um computador que, num ambiente refrigeradíssimo,
    ocupava todo um andar de um prédio da universidade e era infinitamente
    menos poderoso que meu notebook de um quilo e pouco.
    De lá pra cá, até dá para começar a enumerar as novidades que foram
    aparecendo, mas hoje ninguém mais pode fazer isso sem recorrer ao
    Google. A mudança é o tempo todo. E está certo que tudo neste mundo é
    passageiro, inclusive ele próprio, mas acho que o homem gosta de ter
    algum senso de permanência, de duração. Antigamente era possível
    reservar tempo para nos acostumarmos às mudanças, mas hoje esse tempo
    não existe mais e já é piada conhecida dizer-se que o tempo que
    economizamos com os novos gadgets é necessário para que possamos
    aprender a usar os novíssimos.
    Lembro-me de um velho porta-retratos na casa de meus pais, com uma
    foto em preto e branco de meu avô paterno, que ficou lá por mais de
    cinquenta anos. Havia algo de permanência naquela antiga moldura de
    madeira e no sorriso do velho, havia um certo sossego, coisas que
    duravam e eram guardadas ‘para sempre’. No futuro, acho que não se
    conhecerá mais essa sensação. Os porta-retratos agora são eletrônicos
    e programáveis para fazer exibição de slides, mudar a foto
    periodicamente, tocar música e mais outras coisas. As fotos, que hoje
    se produzem com uma abundância inadministrável, também não são mais
    para ficar, nada mais é para ficar.
    A maior parte das novidades dura apenas dias e ninguém se lembra delas
    depois. Aliás, ninguém se lembra de mais nada e a fama às vezes já nem
    alcança os 15 minutos de Andy Warhol, vai embora literalmente em menos
    tempo, como acontece com muita gente enfocada em reportagens de
    televisão. Nossa efemeridade, sempre um pouquinho desagradável de
    lembrar, não tem mais sua sensação aliviada de quando em vez, ela
    agora se mostra em toda parte e todo o tempo, nada dura nada e os
    registros são voláteis. Toda a civilização digitalizada é volátil – e,
    aliás, governos como o americano conservam seus dados preciosos em
    papel, método de armazenamento mais confiável que circuitos integrados
    ou memórias eletrônicas de qualquer natureza.
    Todo mundo saberá ler e escrever, num mundo de mensagens instantâneas?
    Talvez não. Não me refiro a escrever à mão, com lápis ou caneta. Hoje
    já tem quem escreva uma página digitando com os polegares e não
    rabisque três linhas com uma caneta. Mas estou pensando em leitura e
    escrita sem o uso do alfabeto. De vez em quando, sou tentado a crer
    que as futuras mensagens instantâneas, torpedos e similares, serão
    grafados mais ou menos com ideogramas simples – imagens como aquelas
    carinhas Smiley que aparecem em milhares de aplicativos, acrescidas
    talvez de uma ou outra palavra abreviada em letras. De escrever e ler
    usando alfabeto e sintaxe, como hoje ainda fazemos, não haverá
    necessidade para grande parte dos usuários de aplicativos de
    mensagens. Passaremos mais ou menos para hieróglifos simples, que
    deverão ser perfeitamente adequados ao vocabulário e ao universo de
    interesses desses usuários. E talvez os que saibam ler e escrever
    usando o alfabeto venham a constituir uma categoria especial na
    sociedade, como eram os escribas da Antiguidade.
    Fazer conta, então, nem pensar. Não acredito que na escola ainda se
    aprenda a tirar raiz cúbica na munheca, como no meu tempo (eu nunca
    aprendi). Aliás, não acredito na sobrevivência da tabuada – e não me
    refiro àquelas tipo 7 vezes 8, de que a gente não lembrava na época e
    até hoje não lembra. Quem, num futuro não muito distante, responder
    quantas são 6 vezes 9 sem consultar a calculadora será levado para
    estudos num instituto de neurologia e proporão que se conserve seu
    cérebro depois da morte. É nesse tipo de coisa que penso, quando falo
    em tecnologia, não é contra a tecnologia. Será bom para nós não
    sabermos mais escrever nem fazer contas e deixar fantásticas aptidões
    naturais, como a memória, irem se perdendo por falta de uso e
    exercício? Será realmente bom que tudo seja descartável e não dure
    mais que poucas semanas, nesta vida cada vez mais volátil?

    O ESTADÃO – 09/10/11

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